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Galeria Luciana Brito

Estratégias para Luzes Acidentais - Curadoria de Eder Chiodetto

LB News
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O homem não foi feito para ver a luz,
mas para ver apenas as coisas iluminadas pela luz.
Goethe

 

Isaac Newton sugeriu, no século 17, que a luz era formada por partículas. No entanto, experimentos demonstraram, no século 19, que a radiação luminosa era composta de ondas. Einstein, inspirado pela física quântica, embaralhou todas as convicções a esse respeito ao apresentar, em 1905, a teoria que lhe daria o Prêmio Nobel, na qual comprovava que a luz ora se comporta como onda, ora como partícula.

 

O que faz com que a luz tenha essa dupla natureza está apoiado no princípio da incerteza e das probabilidades da teoria quântica, sobre a qual até hoje paira um mistério no mundo das ciências. O certo é que os feixes de luz que desenham a cor e a forma dos volumes, ao serem percebidos pelos olhos, são de natureza incerta, acidental.

 

Logo, é curioso que, ao longo da história, a humanidade tenha devotado à faculdade do olhar tamanha crença e preponderância, com prejuízo, inclusive, das outras dimensões dos sentidos e do saber. “Ver para crer”, diz São Tomé. Ver para crer? Questionam-se os cientistas.

 

Entre a fé e a ciência, a arte se vale desses acidentes de percurso que surgem na matéria da luz e atuam diretamente sobre nossa percepção para criar um campo de tensões e reflexões. O dom de iludir gerado pela natureza errática e imprecisa dos efeitos da luz torna-se, assim, um instrumental fecundo na criação de estratégias poéticas que refletem menos a credulidade no olhar e mais a iluminação do pensamento e a astúcia dos artistas.

 

Estratégias para luzes acidentaisreúne obras de dezoito artistas que investigam o limite da experimentação para obter uma expressão genuína, renovada, que muitas vezes ironiza nossa convicta – e, no entanto, frágil – percepção visual conforme atesta a ciência. “Tomamos sombras por realidade”, diz Sócrates, no “Mito da caverna”, de Platão. Não vemos a luz, mas vemos apenas as coisas iluminadas por ela, lembra Goethe.

 

Os reflexos luminosos dos volumes que enxergamos estão em oposição às sombras observadas na caverna de Platão. Tanto um quanto outro, no entanto, fazem-nos crer numa realidade que é obrigatoriamente volátil, instável, imprecisa. Ou, paradoxalmente, uma Quimera, como nos faz perceber a obra homônima de Regina Silveira.

 

A luz, em diversos trabalhos desta exposição, é o elemento que articula de forma subversiva o trânsito labiríntico entre a realidade visível e seu duplo ficcional, que se desprende do referente ao se transformar em representação. Luz como metáfora da iluminação, do pensamento e da intuição.

 

É dessa forma que Lucas Bambozzi, Albano Afonso e Eder Santos criam deslocamentos inesperados ao gerar, com suas projeções, campos visuais ilusórios de alta densidade poética; já Caio Reisewitz e João Musa sublinham, em suas fotografias, a luz como agente que reconfigura, ritualiza e atribui nova dimensão a espacialidades do cotidiano.

 

Enquanto as clássicas Fotoformas de Geraldo de Barros embotam o referente ao construir uma nova visibilidade das formas pela reordenação da gama tonal que vai do preto ao branco, levando a fotografia ao limite da abstração e, consequentemente, da própria tradição da fotografia, Tiago Tebet, ao contrário, faz uso de uma curta variação do espectro de luz para representar uma delicada gradação tonal a partir de sua paleta de cinzas, na obra Sem título. Estratégia e sutileza semelhantes, porém realizadas a partir de pesquisa de materiais totalmente diversa, ocorrem também nas “transparências” do AVPD, dupla de artistas dinamarqueses.

 

Rochelle Costi e Cris Bierrenbach revisitam suportes e técnicas históricas da fotografia, no caso, o princípio da lanterna mágica e o daguerreótipo, nos quais a emissão de luzes coloridas sobre antigas fotografias em chapas de vidro, na obra de Costi, e a magia de uma imagem que possui, ao mesmo tempo, o positivo, o negativo e o reflexo do espectador, no trabalho de Bierrenbach, criam atmosferas densas e sensuais nas quais a luz recodifica o referente, instaurando instantes de deslumbramento visual. Deslumbrar, importante lembrar, literalmente significa ofuscar, cegar a vista pela ação de muita ou repentina luz.

 

A incapacidade de ver a luz é o ponto de partida também de Rosana Ricalde, que desconfigura o livro e as páginas deEnsaio sobre a cegueira, de José Saramago, para reconstruí-lo numa instalação, após eliminar da obra as palavras que se referiam a cegueira. Estratégia astuciosa que transforma a matéria literária em suporte por onde a luz, metáfora da lucidez, transita agora livremente, criando volumes de luz e sombras altamente sedutores para a visão.

 

Se reflexão e refração estão presentes na trama poética de várias obras, em outras, a ausência desse jogo especular atua para gerar um certo desconforto e interrogar nossa percepção, como nos itens da Collection of Five Plaster Surrogates, de Allan McCollum, feitos de pigmentos negros que “devoram” a luz e não a devolvem ao espectador, em processo análogo ao fenômeno dos corpos negros descrito por astrônomos. A dupla Fabiana de Barros & Michel Favre também parte de uma base negra sobre a qual faz emergir luz a partir do calor, na sérieBrûlures. Uma grafia térmica é criada pelos artistas, que assim obtêm inesperados e enigmáticos desenhos de fogo que lembram símbolos ritualísticos.

 

Em contraponto aos corpos negros, Regina Silveira nos leva a observar a emissão de luz de corpos celestes nas obrasHorizonte e Artefato, nesta última, aludindo ao observador de estrelas e ao fascínio de olhar corpos celestes sabendo que, entre tantos mistérios, a luz das estrelas que chega até nossos olhos pode ter sido emitida há 8 mil anos-luz. O artista peruano Gabriel Acevedo Velarde, no vídeo Worker, também parece observar luminárias como quem olha astros e galáxias.

 

Tomados pela mesma magia, oAVPD doma luzes artificiais, em Window, para que as mesmas se comportem como o sol, num curioso processo de dotar de organicidade um produto industrial, subvertido na sua função básica de não mimetizar a luz natural, mas sim suprir sua falta. De quebra, a Window de certa forma dilui a arquitetura da sala expositiva ao transpor para seu interior a intensidade da luz externa, criando ainda um ponto de contato lúdico com a janela projetada por Bambozzi e com a instalação Luminoso, de Regina Silveira que, ao refletir a luminosidade celeste, ilude nossa visão ao fazer com que o céu se infiltre na arquitetura.

 

Black Sea, da dupla Detanico e Lain, e Éter, de Ricardo Carioba, são obras em vídeo que atuam diretamente nos interstícios de nossa percepção, muitas vezes emitindo informações que cérebro e visão não conseguem processar instantaneamente. Mais que códigos à espera de decifração, essas obras criam uma ambiência, uma atmosfera sensorial, na qual a emissão de luz, sobretudo, possui um caráter quase anestesiante. Luz para um quase teletransporte.

 

Expiração 03, de Pablo Lobato, é um vídeo em via de extinção. Sua última cópia existente será apagada definitivamente ao final da exposição pelo software criado para o projeto. Dele não restarão vestígios, apenas uma luminescência amorfa. Por esse viés, Lobato vai contra a máxima de que produzimos imagens técnicas na ilusão de prolongarmos nossa existência diante da inevitabilidade da morte. O artista subversivamente faz com que a imagem digital ganhe uma condição de impermanência, comparável à mesma fragilidade do humano e sua finitude.

 

Por meio dessa estratégia, que também flerta com a ideia de que a hiperprodução de imagens no mundo cria mais mananciais de amnésia que de memória, o artista advoga a favor de “desgravar não para apagar, mas para liberar gravidades”. Liberar gravidades, por assim dizer, pode ser uma outra forma de enxergar a luz. Afinal, para onde vai a luz quando se apaga?

 

Eder Chiodetto

30.07.2011 a 03.09.2011