EN / PT
Galeria Luciana Brito

Dudi Maia Rosa

LB News
  • 1/1

A Moldura do Sujeito

 

Slightly encouraged, he dipped his brush
In the sea, murmuring a heartfelt prayer:
"My soul, when I paint this next portrait
Let it be you who wrecks the canvas".1

 

Em uma exposição onde trabalhos diversos e outros, literalmente gêmeos, aparecem sob o mesmo estigma de uma moldura ornamental é provável que se procure alguma referência do que está emoldurado, encarnando o artista de forma inédita. A moldura é um símbolo da institucionalização da pintura e o que ela compreende deveria estar assimilado pelos domínios desse gênero, senão dentro, fora do quadro, já que a aparente diversidade não permite dizer do que se trata, ou mesmo a duplicação também não confirma, por si só, os parâmetros de uma obra.

 

Pois é um pouco constrangedor, e não deve ter nada a ver com a qualidade da obra, mas Dudi Maia Rosa é um nome que permanece sem uma crítica que lhe atribua um lugar determinado nas artes plásticas brasileiras.

 

Talvez pelo fato de não ter respondido teórica ou historicamente por seu trabalho, mais provavelmente porque o montante geral de sua produção traz uma poética que denotaria precariedade ao ter subjugado a pesquisa formal a questões que só podem ser vistas, de modo sistemático, como subjetivas e alheias à solidez institucional que as artes nacionais têm afirmado. O fato é que, o que se tornou, hoje, uma exigência a ser suprida a qualquer preço, nem que seja pelo próprio artista, foi evitado por ele, desde os tempos de seus vínculos com a Escola Brasil, quando já se nutria dos desequilíbrios e tensões que a atividade artística é capaz de sustentar, no limite do embate direto do sujeito com sua pintura.

 

Não há mais como escapar aos mal-entendidos propiciados por esse tipo de atitude quixotesca, como em relação a um cunho religioso de seu trabalho, à constante reiteração de conteúdos mais literais e simbólicos nas pinturas ou alternância persistente entre a abstração plena e resquícios figurativos. São elementos que dificultam realmente uma aproximação mais segura da arte como produto, senão de uma consciência de um processo crítico, da fidelidade a padrões formais estáveis.

 

Por outro lado, todos esses impasses relativos à operação semântica pela qual seus trabalhos foram concebidos, sem negar aí a existência de momentos mais e menos felizes, atingiram um resultado que permitiu a um dos únicos críticos que se ocupou em analisá-lo, ainda no início da década de 80, encontrar com uma clareza admirável, no próprio título de um dos quadros, o entendimento de todo um processo, que alias, se mantém o mesmo até hoje: “Como Jonas, que viveu três dias e três noites no ventre de uma baleia, Dudi Maia Rosa age no coração da pintura, no interior da matéria pictórica. Consome-se nela, na sua interioridade, faz confundir a prática da pintura com seu discurso.”2

 

Assim, da perspectiva do embate do artista com uma prática que mantém sua vitalidade muito por conta de metamorfoses e reaproximações, todo o percurso de um trabalho de mais de 30 anos passaria a ser coerente e autônomo, mesmo em relação a um agenciamento crítico.

 

Se associada às suas referências mais essenciais ao surrealismo de Magritte e De Chirico, por exemplo, a permanência dentro da representação, pelo desenho, um instrumento de utilidade até então insuspeitável para um artista, sua primeira exposição individual é um feito que conjuga humor e lirismo em uma pintura de evidente qualidade. Como um bom desenhista, não havia porque abandonar esse recurso à medida que permitia uma reformulação de referenciais biográficos num cenário transfigurado da cidade de São Paulo, uma atmosfera às vezes até virtuosa, mas inegavelmente promissora.

 

Mas, novamente, as implicações dessa prática, dessa liberdade que se pode ter mediante um talento invulgar, não foram poucas porque essa não era a questão do momento, e justamente, só poderia ser encarada como alienação ou como uma revisitação paulistana do projeto meta-histórico de pintores mediterrâneos do início do Século 20; o que hoje é aceito complacentemente, mas que na época soaria como um surto.

 

Diante do requinte estrutural neoconcreto, as pinturas de Dudi Maia Rosa eram evidentemente anacrônicas, encaixadas forçosamente, em último caso, no que se convencionou chamar Nova Figuração. Mas como se disse, nas décadas de 60 e 70, seus temas eram ficções oníricas com a cidade de São Paulo como pano de fundo e traziam protagonistas que não poderiam estar mais alheios a um pensamento engajado da arte, do que “Pinocchio” (1978). E dificilmente se poderia falar em malícia e simulação do sujeito num contexto pós-moderno; era mesmo uma identificação com o mais desenganado dos personagens infantis que, ainda mais, não era brasileiro.

 

Do ponto de vista de uma tradição, o máximo que poderia se esperar era um período de incubação que se consolidaria na onda figurativa da década de 80, quando, já por uma questão geracional, Dudi Maia Rosa seria um veterano do lirismo figurativo e personalista; depois de se humanizar, o boneco de madeira teria sua recompensa, ganharia sua cidadania e seria emancipado à condição de carne e osso. Ou, o aspecto artesanal do desenho reencontraria um lugar num mundo ideológico, pela legitimação de um cunho mais intimista da obra de arte em geral.

 

Nada, na década de 80 seu trabalho se geometrizou cada vez mais e seguiu numa investigação praticamente obsessiva do suporte. Um plano de madeira era cortado em forma de círculo e depois recortado em uma espiral. Construía-se, com massa plástica, uma estrutura em baixo-relevo e aparecia uma espécie de quadro-objeto coberto por uma tessitura pictórica advinda de suas experiências figurativas, mas integrada a um plano que dinamizava violentamente seu movimento. Em uma de suas exposições de pinturas mais importantes, em 1982, havia uma reformulação externa dos quadros, uma significativa expansão tridimensional e a incorporação de uma “caligrafia” própria às interferências cada vez mais autônomas e gestuais. Uma pintura na escala amplificada da Action Painting, mas com preocupação notável com uma morfologia diferenciada do suporte, ao que coube a tangência com o universo da representação: em “Como Jonas”, a “tela” tinha essa forma arquetípica de uma baleia e, em seu interior, em meio ao fluxo bastante expressivo de riscos e pinceladas, era possível encontrar um resquício antropomórfico dado a ver especialmente pela profusão dos movimentos que o cercavam. 

 

Em última análise, tanto Jonas quanto Pinocchio haviam sido engolidos por um peixe gigante. Mas o profeta transcendia o aspecto icônico e levava a uma ação individual que acabou por romper, na pintura, com os vínculos com uma formação identificada com uma determinada escola, um determinado procedimento comum a outros artistas, mais próximos ou não.

 

Em 1984, ocorre o primeiro experimento com a resina sintética, que passa a dar um aspecto translúcido àquela matéria que mimetizava a própria pintura. Não havia como mimetizar mais nada porque o próprio corpo do trabalho era transparente, e a estrutura que o mantinha erguido, em formatos mais estrambóticos, estava finalmente em evidência, escancarava o truque virtuoso do artista que precisava construir para criar seus efeitos oníricos e lúdicos. O embrião gestual deu em uma nova matéria em que pintar não era mais aplicar tinta sobre tela, era agir com pigmento e medium, por traz do plano pictórico, para depois erguê-lo como um corpo inteiro.

 

A possibilidade de que Dudi fosse identificado como representante de uma figuração dos anos 80, algo que dificilmente lhe passou pela cabeça, contando que a questão da arte se tornava para ele cada vez mais ética, até finalmente ser religiosa mesmo, foi enterrada viva. Seus “Fibers” (1984), em que a tela foi substituída pela manta de fibra de vidro, trouxeram-lhe, naturalmente, mais visibilidade junto a certa obviedade que começou a incomodar o artista: era inadmissível para alguém comprometido com uma prática de pintura, que seus trabalhos fossem simplesmente moldados em resina e arrancados do piso como estampas de uma nova dimensão. E ainda mais, que resumissem em formas impessoais um modo de autoconhecimento que estava no centro de seu pensamento artístico. A idéia da arte como um compromisso menos sensorialista, menos cromático, menos “bem-sucedido” parece ter passado a contaminar cada um de seus quadros mais límpidos e bem acabados.

 

Logo, iniciou-se um estágio de corrosão da superfície dos trabalhos, uma crise expressa em termos de diversificação desordenada de materiais que operou uma transição bem menos produtiva em sua obra. Foi um período de resultados isolados, também pelo fato de que se criou um evidente desequilíbrio entre a diversidade de procedimentos e materiais, e as soluções possíveis para cada caso. Em um deles porém, “Santo Sepulcro” (1991), por meio de uma formulação estranhamente minimalista, chegou à “consubstanciação” da matéria em túmulo. Na própria superfície do quadro em questão se prenunciava certa dubiedade; aquilo era pedra, lápide tumular, mas tinha uma leveza de tecido. Essa manutenção eficaz da representação, num nível bastante mais sofisticado, era uma prova de que o esgotamento compulsivo do suporte e a adesão a diversos materiais não tinha sua razão de ser senão pudesse se sustentar nos limites essenciais de um processo pictórico.

 

Só em 1994, Dudi fez uma exposição em que o termo “artifício” pôde se aplicar mais amplamente aos procedimentos que ele mesmo conduzira e resolvera em sua pintura. A questão do conflito entre elemento translúcido da resina sintética, a permanência de uma gestualidade e a diversificação de materiais  - gesso, cera, alumínio - culminaram em trabalhos em que a superfície passou a concentrar todos os níveis de tensão em relevos orgânicos, que sintetizavam reações termoquímicas provenientes da própria feitura das obras. Do ponto de vista temático, e não por acaso, são obras que fazem mais referência ao outro do que a si mesmo: “Aos Polignaneses” (1994), “Para Ismael”, no sentido de que havia mais autonomia do objeto em relação ao sujeito, sem que isso impedisse a permanência de uma poética centrada no indivíduo.

 

Quer dizer, até então, se poderia falar de um percurso em que fazer arte era quase o mesmo que se auto-decifrar em quadros, se associar cegamente a personagens literários, admitir-se um pouco Pinocchio, um pouco Jonas, um pouco Job. Um  drama plástico para questões anímicas, psicológicas. Finalmente, era possível se desvencilhar dessa teatralidade, de um conceito de arte em que a lida com qualquer coisa mundana e material, como tintas, gesso, argila, metais levaria à vivência de um conteúdo impregnado, inerente. E, de fato, Dudi continuava, ainda como o personagem de Collodi, como antípoda do iconoclasta, preso ao fardo moralizante através de que desejar uma ruptura geral, suprimir as bases de seu trabalho para uma proposta iniciática era o mesmo que submeter o próprio corpo, de madeira, ao fogo.

 

Em “Lázaro” (1998), a resina transparente, moldada em um baixo-relevo, conformava um desenho insustentavelmente abstrato, que não queria suprimir ou recalcar algo que não cabe mais em nosso mundo, e acabava por delinear no escuro, figuras integradas umas às outras. Admitia-se que nada disso era tão prazeroso ou estratégico e mesmo o material que melhor se adaptou aos seus questionamentos, a resina poliéster, era, a despeito de sua aparência translúcida e espiritual, uma substância absolutamente sintética e agressiva. No entanto, mantinha-se uma poética possível pelo artifício, na qual a figuração parecia brotar em cor de um olho d’água no interior da pintura. E a cena onírica voltava a ocupar o devido lugar de um escape à crise de consciência de que qualquer artista mais genuíno não tem como escapar.

 

Hoje, a série de dez novas pinturas, que continuam sendo chamadas pela dominância de uma prática, mostra um artista que lida com o mesmo conteúdo acessado em seus primeiros quadros: o surrealismo ingênuo, graciosamente impresso por uma pintura de talento de um pequeno burguês de Higienópolis, encontra uma solidez estranhamente situada. Não vaga mais no espaço da tela pela atuação de um boneco falante, nem é transportado no ventre de um monstro mítico; esse veículo inevitavelmente matérico, agora se sabe, é produto da consciência e domínio de um ofício.

 

A pintura como suporte do sujeito tem uma lógica de espelho que, como o quadro, também tem sua moldura ornamental. O conteúdo, nesse plano, não se acessa senão pela soma de outros olhares, pois o protagonista que personificava o artista naquele interior deixou a cena, seguiu seu rumo.

 

São talvez muitos espelhos para muitos narcisos, e portas quase fechadas para esse terreno difuso, para além da superfície. Como se ao falar de alteridade no campo da pintura, ela tivesse que ser drenada por uma matéria de profundidade obscura ou simplesmente incerta, em que nada mais se fixa.

 

A moldura, como a instituição, não suporta o Eu. Esse entorno que representa agora é somente índice de uma aceitação, afinal, de que o artista não poderia responder sozinho por uma estética ou uma nação, e que não escapa de sua exposição extrema diante de que são ridículas as palafitas teóricas que tentam mantê-lo acima de uma maré que nunca vai deixar de chegar a seu termo.

 

A moldura é contígua ao interior do quadro, faz parte de uma superfície revolta que não se parou de pensar povoada de signos, agora inundados, submersos por uma natureza movediça, mas com um peso que fica. Assim, a obra consegue suportar de uma vez, uma pintura que nunca coube em lugar nenhum, somente na prática que a torna possível.

 

Rafael Vogt Maia Rosa

 

1. Estrofe extraída do poema The Painter. In: Some Trees, John Ashbery, 1956
2. Frederico Morais, Como Jonas, no Ventre da Pintura, Revista Módulo, #79, 1984

16.08.2001 a 06.09.2001

terça a sexta-feira, das 10h às 19h
sábados, das 11h às 17h
entrada gratuita