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Galeria Luciana Brito

Regina Silveira

LB News
1939
Porto Alegre, Brasil
Vive e trabalha em São Paulo, Brasil

Transbordamentos

Fernando Cocchiarale, 2002 PDF

A instalação de Regina Silveira, A Lição, é mais um desdobramento do sentido poético e semântico predominante em sua obra nos últimos 20 anos: aquele que deriva da crítica aos repertórios clássicos da representação da sombra e da luz na arte ociadental. Recorrentes de modo variado na  produção da artista, esses repertórios vem sendo por ela trabalhados, contra eles mesmos. Aspectos convencionais da arte, institucionalizados como percepção pelo senso comum, nos são devolvidos, de maneira distorcida, em escalas desconcertantes, como índices de ícones inexistentes ou apenas sugeridos.

 

Entretanto é fundamental frisarmos que a explicitação, pelo discurso, do caráter crítico de parte considerável do trabalho de Regina, não assegura ou substitui o sentido poético silencioso de sua obra. A contigüidade das experiências ética e estética, característica da contemporaneidade, suscita, mais que nunca, a mediação da palavra. Entretanto, face à obra, esta mediação soa deslocada e incompleta pois não pode reter o que a arte possui de essencial (1).

 

O sentido crítico das obras de Silveira pode ser remetido, então, por analogia, à discussão do estatuto da arte e suas instituições promovida, por exemplo, pelo Dada e sobretudo pelas reverberações da arte conceitual. Apesar de bastante diversas, estas duas tendências questionaram os repertórios convencionais da arte, tomando uma posição contrária à  valorização da formalização e da materialidade da obra, tão cara ao modernismo hegemônico das vanguardas históricas.

 

No entanto, ainda que o questionamento dos repertórios da arte aproximem as obras de Silveira da questão conceitual, estas, se tomadas apenas em sua configuração imagética, divergem radicalmente da proposta desmaterializadora, dessa vertente contemporânea. Quando  ainda na década de setenta a artista assimilou o conceito do trabalho como um elemento poético-crítico, ela assumiu o legado gráfico-espacial  da poesia concreta e sua afinidade teórica com o pensamento semiótico. Regina sempre exprimiu, portanto, sua visão crítica da instituição-arte, por meios predominantemente visuais, em detrimento de discursos narrativos.

 

Sua obra nasce, pois, do encontro poético de duas genealogias paralelas da arte contemporânea. Aquela que advém da desmaterialização inerente ao conceito, e a da objetivação proposta pela arte concreta. Produzida pela junção de tradições antitéticas, esta tensão cria uma espécie de paródia na qual se ancora o polissêmico trabalho da artista. Alguns desses sentidos, embora perpassem o conjunto de sua produção nas últimas décadas, se manifestam especialmente em A Lição. Ela pode ser esclarecida por meio de um recuo histórico e estético até o Renascimento.

 

Tornou-se possível a partir do século XV construir um sistema de representação visual de luz e da sombra que permitia, no plano pictórico, a ilusão de volume. A representação do mundo de maneira naturalista (um padrão ótico) determinou a distinção entre o papel inventivo do pintor, ao criar uma solidez apenas ilusória, e o do  escultor, cuja solidez do trabalho advinha da volumetria real do bloco escultórico produzido pela natureza.

 

Para Leonardo da Vinci “Em primeiro lugar, a escultura está sujeita à uma certa iluminação, a saber, de cima, e a pintura leva com ela, por todos os lugares, a sua luz e a sua sombra. Luz e sombra são portanto de importância para a escultura, mas aquele que a pratica é ajudado aqui pela natureza, quer dizer, o relevo que ela fornece dela mesma; o pintor as produz pela criação artística, nos lugares onde a natureza deveria fazê-las logicamente.” (2)

 

De tom naturalista, o comentário manifesta não só a rígida separação então vigente entre as artes, como também a possibilidade de hierarquizá-las numa nova ordem. O processo escultórico seria menos complexo do que o da pintura porque decorreria de um trabalho menos intelectualizado. Somava-se a esta idéia, a crença Leonardiana no predomínio do esforço físico, na escultura, em detrimento da intensa inquietação experimental da atividade intelectual investida na arte de pintar. Conforme Da Vinci, o pintor criaria, com as cores, uma gama de luzes e sombras que a escultura, por resultar da transformação de materiais naturalmente volumétricos, jamais exigiu. É como se a pintura ao recriar a luz e a sombra, por meio do engenho e da arte, exigisse mais da razão que a escultura, pois esta as rouba diretamente  da natureza.

 

Leonardo compreendeu, tal como também, séculos mais tarde, Maurice Merleau-Ponty, que a luz e a sombra são condições inelimináveis da visibilidade, vitais, portanto, não só para a escultura, como, sobretudo, para a pintura.

 

Em O Olho e o Espírito Ponty indaga: “É a própria Montanha que, lá de longe, se mostra ao pintor, é a ela que ele interroga com o olhar. Que lhe pede ele exatamente? Pede-lhe desvelar os meios, apenas visíveis, pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos. Luz, iluminação sombras, reflexos, cor, todos esses objetos da pesquisa não são inteiramente seres reais: como os fantasmas só têm existência visual. Não estão, mesmo, senão no limiar da visão profana, e comumente não são vistos. (...) Desse jogo de sombras, ou de outros semelhantes, todos os homens que tem olhos foram, algum dia testemunhas. Era ele (o jogo de sombras) (3) que lhes fazia ver coisas e um espaço. Mas operava sem eles, dissimulava-se para mostrar a coisa. Para vê-la, a ela, Não era preciso vê-lo, a ele. O visível no sentido profano esquece as suas premissas...” (4).

 

Num percurso retrospectivo, podemos distinguir duas vertentes da investigação de  Regina Silveira sobre as possibilidades poéticas da sombra gráfica (experimentada numa outra direção, por Goeldi): uma que explora o caráter planar (não sólido) da incidência da sombra no espaço; outra, bem mais recente, que trabalha o papel da sombra na construção e na percepção do volume.

 

A primeira vertente pode ser remetida à citação de Merleau-Ponty. Começa a partir da inserção da silhueta em A Arte de Desenhar (1982), passa pelas Anamorfoses, e vem se prolongando em algumas instalações como Solombra (1990). Numa inversão da realidade física (ótica), Regina faz a luz derivar da representação das sombras que cria em alto-contraste. Por meio dessa operação gráfica as paredes pisos ou quaisquer outros suportes, inclusive os convencionais, sobre os quais as sombras são diretamente aplicadas, tornam-se áreas luminosas. Além disso é impossível não  registrarmos a misteriosa ausência de representação dos objetos que deveriam projetá-las. A estratégia poética dessas obras, obriga-nos a centrar a nossa percepção naquilo que, conforme Ponty, é esquecido pelo sentido profano: luz e sombra são premissas fundamentais da visibilidade.

 

A segunda vertente explorada por Silveira tem por marco a instalação Equinócio (5) e em A Lição, sua versão mais abrangente. Nestes trabalhos ela ultrapassa as diferenças estabelecidas por Da Vinci entre a representação de luz e sombra, na pintura, e sua incidência real na escultura. Assim como a artista conseguiu derrubar a consagrada oposição entre idéia (sujeito/conceito), e obra (o objeto formado pelos espaços físico, institucional, simbólico, perceptivo), aqui representadas pelo conceitualismo e pela arte concreta, seu trabalho atual vem desfazendo, também, as fronteiras convencionais entre a pintura e a escultura.

 

A representação da sombra, associada ao volume real de sólidos como o cilindro, a esfera, o cone e o cubo (6), cujo caráter anti-naturalista é essencial para o sentido de A Lição, resulta num espaço que não é apenas sólido, ou pictórico, mas também gráfico. Se observarmos o tratamento que a artista vem dando, há mais de vinte anos, à luz e à sombra, veremos que ele transborda não só os limites da cor e do volume, como também os do desenho e da gravura.

 

Aqui, a representação desses elementos essenciais da visibilidade partilha com o design gráfico e a propaganda alguns padrões técnico-industriais e estéticos. O caráter público dessas linguagens visuais contíguas à da arte termina por imprimir-se na grandiosa escala – arquitetônica e urbana – de grande parte das intervenções espaciais da artista.

 

Ao lado dessas camadas significativas, que nos remetem ao estatuto ontológico da luz e da sombra; que desfazem os limites entre materialidade e representação; que neutralizam a separação entre a pintura e a escultura, A Lição possui também uma dimensão semântica específica.

 

Os sólidos abstrato-geométricos agigantados que integram a instalação estão arranjados numa composição de escala gigantesca. Eles evocam os modelos usados nas aulas de composição tradicionais de desenho e pintura. Referem-se à transmissão de repertórios que o classicismo associou, habitualmente, aos valores eternos de uma suposta natureza da arte.

 

Para a lógica do sistema que os propôs como exercício, esses sólidos jamais possuíram, no entanto, em si mesmos, qualquer valor poético. Afora a alusão explícita à pedagogia convencional da arte feita pelo título (A Lição), a artista pontua sua irônica crítica apenas com os recursos inerentes à própria formalização do trabalho.

 

Ao apresentar modelos estruturais do ensino da composição como uma obra, ao enfatizar esse desvio da função dos sólidos pelo agigantamento, Regina Silveira substitui a lição na qual estes estavam confinados, por uma experiência estética difícil de ser capturada pela palavra crítica.    

 

Fernando Cocchiarale

Julho de 2002

 

 

Notas:

 

(1)   “Resumir uma tese é reter-lhe o essencial. Resumir (ou substituir por um esquema) uma obra é perder-lhe o essencial. Vê-se o quanto essa circunstância (se se compreende o seu alcance) torna ilusória a palavra do esteta”.Valéry, Paul: Carta a Leo Ferrero/ Leonardo e os Filósofos, in Introdução ao método de Leonardo da Vinci, São Paulo, Editora 34, 1998. p. 203

 

(2)   Léonard de Vinci: Traité de la Peinture (textes traduits et présentés par Pierre Chastel), Paris, Éditions Berger-Levrault, 1987, p.101.

 

(3)   O esclarecimento grifado é nosso.

 

(4)   Merleau-Ponty, Maurice: O Olho e o Espírito, in Textos escolhidos (col. Os Pensadores), São Paulo, Abril Cultural, 1980, pp. 91 e 92.

 

(5)   Instalação mostrada em setembro de 2000 na galeria central das Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro e, em versão, modificada, na exposição Estratégias para Deslumbrar, do MAC, realizada em 2002, no edifício da Fiesp, em São Paulo.

 

(6)   Num sentido deliberadamente próximo, do ponto de vista das intenções de Regina Silveira, ao de Cèzanne que afirmou, em carta para Émile Bernard, que a natureza devia ser vista através do Cilindro, da esfera e do cone.